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sexta-feira, 24 de maio de 2013

Carlos Lacerda e os posseiros de Jacarepaguá






No início da década de 1960, o Partido Comunista Brasileiro já havia adotado um rumo de total conciliação com os setores da burguesia nacional, seja do meio urbano quanto do meio rural. Mas ainda havia algumas forças conservadoras cuja aliança ou parceria era tida como inviável para o PCB. Uma delas era a UDN, especialmente a sua liderança maior – Carlos Lacerda. Era esta a figura a ser combatida, talvez o principal adversário político do PCB no âmbito do estado da Guanabara. A ele seriam dirigidos a partir do início da década de 60 os principais e mais intensos ataques, mais até do que ao “império ianque”. Lacerda seria responsabilizado por todos os infortúnios vividos pela população carioca e o Novos Rumos (novo nome do jornal do PCB) tentava demonstrá-lo seja através de editoriais e reportagens ou de pequenas “homenagens”, como a que foi concedida na forma de uma música de autoria de Sarandy, leitor assíduo do jornal:   
Nas eleições
quanto potoca,
mil ilusões
pro carioca

Hoje está vendo
o tempo perdeu,
e está sofrendo
quem te elegeu

A água sumiu
o “bicho” rendeu, o povo sentiu
e se arrependeu

Ao progresso
sois um estorvo,
filho da Esso
maldito Corvo

Ódio da farda
é tua sina
o rio da guarda
virou piscina
ódios internos
ódios antigos
crias infernos
mata-mendigos (Novos Rumos, 06-12/09/63, p.6.)

CHARGE DE LACERDA DO ÚLTIMA HORA. ACERVO: ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO.

      As notícias sobre violências e crimes cometidos por grileiros contra lavradores cariocas seriam usadas pela imprensa comunista como um instrumento de afirmação do seu antagonismo em relação a Lacerda. Todos os problemas e desventuras sofridas pelo lavrador do Sertão Carioca eram, no final das contas, colocados da conta do “corvo da rua do Lavradio” (Esta era a rua onde se localiza até hoje o Tribuna da Imprensa, na época de propriedade de Lacerda), que agiria mancomunado com as companhias imobiliárias no crescente processo de especulação das terras da zona rural do Estado da Guanabara.
      Exemplo disso foi a destruição das hortas de cem lavradores em Jacarépaguá por parte de policiais da vigilância sanitária. Sob o título “Polícia de Lacerda protege a ‘saúde da light”, o Novos Rumos desvendava os verdadeiros motivos “da invasão destruidora, com tôda a sua truculência de tipo fascista” da polícia. Alegava Lacerda que a destruição das hortas tinha se dado em função de preocupações com a higiene e a saúde da população, já que as hortas seriam regadas com águas de um riacho contaminado. Na verdade, revelava o Novos Rumos, as terras pertenceriam à Rio Light S.A., que estaria disposta a expulsar os lavradores para poder alugar os lotes agrícolas a uma companhia imobiliária:
“É simplesmente o aumento do lucro imobiliário que o sr. Lacerda favoreceu, ao iniciar, na prática, a expulsão dos lavradores das terras da ‘Light’, destruindo suas plantações sem a menor indenização e sem qualquer informação aos lavradores sôbre seu futuro(...).
Talvez agora se torne mais compreensível porque tão grande número de escritórios eleitorais do sr. Lacerda localizava-se nos térreos de edifícios em construção”( Novos Rumos, 10-16/02/61, p. 6.).

Nessa mesma área seriam instalados anos mais tarde o Hospital Cardoso Fontes e a Fábrica de Papelão (hoje desativada e prestes a se tornar um shopping).

CHARGE DE LACERDA DO ÚLTIMA HORA. ACERVO: ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO.


      Meses depois a polícia de Lacerda voltaria a “assinar ponto no sertão guanabarino”. Tal como em Jacarépaguá, aquele mobilizaria a polícia em Campo Grande para atender aos “negros propósitos” dos “tubarões de terra” numa nova “empreitada sinistra”:
“Cenas difíceis de se supor que ocorressem em longínquos rincões do interior, onde o coronelismo e o latifúndio impõem sua vontade, acontecem a menos de hora e meia de ônibus do centro do RJ.(...) com o conhecimento e a aprovação tácita do governador – (...) o aparelho policial se presta a violentar primários direitos de cidadãos pacatos, de quais não se conhece outra atitude que não o do trabalho, penoso e diuturno” (Novos Rumos, 11-17/08/61, pp. 1 e 6.).  


Segundo noticiava o Luta Democrática às vésperas do golpe de 64, uma “reforma agrária” estava prestes a ser “decretada” em Vargem Pequena (Jacarepaguá), mas não pelos seus 1.220 “posseiros” e sim “pelos velhos e conhecidos grileiros da região, antes abandonada e desvalorizada.” Por meio dessa “reforma agrária”(!) os “posseiros” estavam “sendo violentamente ameaçados de serem expulsos de suas terras” e ainda “perdendo suas benfeitorias”. Para sua implementação recorria-se aos serviços de capangas armados, “incumbidos de invadir as terras, abrindo fogo, a todo custo, como se aquilo fosse terra de ninguém”. E segundo jornal, tudo isso contaria com o beneplácito do poder público:
“Todas as queixas levadas às autoridades policiais, pedindo garantias, são recusadas ou postas na ‘geladeira’, porque o assunto é da alçadas da Justiça ... salvo se houver bala!
Já se verificaram casos em que os lavradores que vão pedir garantias ficam presos para averiguações.” (Luta Democrática, 24/03/1964. p. 7).
    
      Longe de serem vistos como um fenômeno distante e inexplicável, só apreendido pela matemática dos censos, os loteamentos eram considerados como sendo de autoria de “grileiros”, “ladrões de terras” e “aventureiros”, cujas práticas acarretavam inúmeros “malefícios ao abastecimento da cidade” e à “vida de humildes lavradores” e suas famílias. Ou seja, a expansão dos loteamentos sobre o Sertão Carioca se deu paralelamente à formação de uma importante arena de disputas em torno de valores e significados referentes a noções de direito e justiça. A existência de tal arena acabou sendo desconsiderada quando alguns estudiosos preferiram designar esse processo como “expansão do vetor urbano pela área rural” ou como Fânia Fridman preferia afirmar como “loteamentos promovidos em sua maior parte pelo setor imobiliário”. Mas na época em que esse processo se deu, ele era qualificado por alguns órgãos de imprensa como “repelentes assaltos de terras” praticados por “malfeitores encasacados”, ou, como contra-argumentavam as loteadoras, como a “chance sem igual de uma vida alegre” com “aplicação de capital seguro”, em terras “devidamente registradas e legalizadas”. E além de produzir novas ruas e casas, tal expansão concorreu para o surgimento de novas idéias, representações e certezas: dentre elas, foi-se consolidando a de que os infortúnios vividos pelos habitantes da região atendiam a interesses de um determinado grupo: enquanto a diminuição da produção agrícola acontecia, levando ao declínio das condições de vida dos lavradores e à falta de gêneros para o abastecimento da cidade, havia homens que faziam fortunas com ela.  
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