como criar um site

segunda-feira, 23 de novembro de 2015




As informações que temos a respeito da origem dos pequenos lavradores são além de muito imprecisas, bastante fragmentárias, não só em termos de espaço como também de tempo. Sabemos, por exemplo, da origem de arrendatários e foreiros de algumas grandes propriedades no século XIX, contudo muito pouco sabemos da origem dos ocupantes que se estabelecem no século XX, o que torna difícil identificar a suposta ligação entre “antigos” e “novos” ocupantes. No entanto, se essas informações não nos permitem comprovar ou desdizer afirmações, elas podem ao menos sinalizar para importantes aspectos do campo de possibilidades do Sertão Carioca. Aproveitemos delas portanto aquilo que estimule a construção de novas hipóteses.



Carta do Distrito Federal, de Everardo Backheuser, 1925.

Em boa parte das localidades de pequenos lavradores, as indicações sugerem que a ocupação por parte desse tipo de trabalhador teria se dado quando as propriedades ainda eram grandes engenhos ou fazendas de café no século XIX e XVIII, os quais eram na sua maioria pertencentes às ordens religiosas como a dos Beneditinos e dos Carmelitas. Francisco Siqueira, memorialista e “posseiro” da região de Guaratiba, destaca que a detentora de parte das terras de Pedra de Guaratiba, a Matriz de São Salvador do Mundo, começou em fins do século XVIII a “arrendar as terras já ocupadas a seus posseiros” que, em troca, teriam que manter a iluminação dos templos. Segundo o autor, os “posseiros” que entraram em litígio com pretensos proprietários a partir da década de 1940, eram todos eles descendentes daqueles “posseiros” de fins do XVIII. O geógrafo Sylvio Fróes também destaca que a região foi nas primeiras décadas do século XX o ponto de chegada de uma numerosa leva de migrantes cearenses, mais precisamente da região de Cariri. Ao se estabelecerem ali passaram a promover amplamente o cultivo de laranjas e coqueiros-anões. Além disso, segundo nos atesta Fróes, também produziam “rapadura de excelente qualidade”. Alcebíades Rosa, em suas memórias sobre Sepetiba, menciona que a ocupação daquela região se consolidou por meio do decreto-lei de 26 de julho de 1813, pelo qual a Coroa doou as terras de Sepetiba aos pescadores e lavradores que ali já estavam estabelecidos.


Família de lavradores-pescadores da Barra da Tijuca. Fundo Última Hora, do Arquivo Público de SP, 18/12/1954.


Em algumas áreas, os lotes rurais tinham se originado de arrendamentos, aforamentos ou livres concessões dos proprietários aos seus escravos ou ex-escravos. Fridman destaca que isso era uma prática comum entre os Beneditinos. Seus escravos possuíam pequenas roças e gado para seu sustento, sendo permitida a comercialização de seu excedente contanto que não exercessem “ofício para lucro”.


Em 1871, o Mosteiro de São Bento libertou os 918 escravos que trabalhavam naquelas terras, há indício de que alguns deles tenham permanecido morando e trabalhando naquelas terras. Ainda no século XIX, o Engenho da Serra, que se localizava numa área hoje cortada pela estrada Grajaú-Jacarepaguá no bairro da Freguesia, abrigava diversas fazendas, entre as quais a de Cantagalo, onde trabalhavam 70 escravos que plantavam arroz, cana-de-açúcar e café. Todos eles possuíam ali uma “choupana”.

Outra família de lavradores da Barra da Tijuca.  Fundo Última Hora, do Arquivo Público de SP, 18/12/1954.

Como dissemos anteriormente, são poucas as informações que pudemos colher nos textos de geógrafos e memorialistas sobre ocupações que tenham se processado durante o início do século XX. Uma delas se refere à ocupação das fazendas Guandu do Sena e Sete Riachos, na Serra do Mendanha. Os lavradores estariam ali estabelecidos desde 1913 como “arrendatários”, uma situação que aliás permaneceria nas décadas de 50 e 60, quando das disputas pela terra contra companhias imobiliárias. Mas a maior parte das informações se refere mesmo às ocupações realizadas por imigrantes portugueses. Eles teriam se instalado em Realengo, Bangu, Jacarepaguá, Rio da Prata, Gaundu do Sena e Guaratiba. Leonarda Musumeci afirma que eles se notabilizaram pelo cultivo de verduras e legumes e pela introdução de algumas técnicas (horta encanteirada, terraceamento nas encostas, adubação orgânica). No Sertão Carioca, segundo a autora, era às chamadas “hortas de portugueses” que se atribuía a “vanguarda em produtividade e eficiência”. Muitos dos que se dirigiram para Realengo tiveram que se deslocar no início da década de 50 para outras terras por conta do avanço dos loteamentos. A área escolhida foi o Guandu do Sena, na Serra do Mendanha. Hilda Silva nos informa que esses portugueses eram da Ilha da Madeira. Também foi naquele período que os portugueses começaram a afluir para Vargem Grande, principalmente para a área do “Brejo”. Maria Galvão afirma que eles eram 90% da população dessa área. Galvão pôde identificar uma certa diferenciação entre os próprios portugueses, que se dividiam entre os “portugueses”(Continente) e “ilhéus”(Ilha da Madeira). No dizer dela, os primeiros não gostavam de “se misturar” com os ilhéus por considerá-los pessoas “rudes e belicosas”.  Fossem da Ilha ou do Continente, os portugueses, quando aqui estabelecidos reuniam-se “em sociedade de 3, 4 e até muitos membros provenientes da mesma província, e até da mesma freguesia” do território português. Entre os “portugueses” predominavam os do Conselho de Penacova, enquanto os “ilhéus” vinham em sua maioria do Conselho de Ponta do Sol.
     
Idem.


Quanto à produção, praticamente todo o Sertão Carioca privilegiava a “lavoura branca”(hortaliças e legumes) e a fruticultura; as lavouras, se assim podemos dizer, mais típicas de um Cinturão Verde, como era o caso dessa região. Mas a proximidade com o centro urbano não parece ter sido o único motivo para a implantação dessa modalidade agrícola. Pedro Geiger e Myriam Mesquita afirmavam que o processo de grande valorização das terras que passa a se intensificar na década de 50 fazia com que a manutenção das propriedades agrícolas se desse “na base de produtos bastante lucrativos como as verduras e frutas”. “Só esta lavoura”, assim consideravam, “podia se manter às portas da cidade ou então os aviários e apiários”. Os dados coligidos por outros geógrafos quando da realização dos seus estudos de caso em algumas localidades do Sertão Carioca nas décadas de 50 e 60 reiteram essa afirmação. Amélia Nogueira, em seu estudo sobre a localidade de Vargem Grande, observa que as plantações se dividem por três áreas: nas “encostas”, plantava-se banana-prata. Em sua “baixada argilosa”, encontravam-se plantações de laranja, banana, aipim, mamão, milho, cana, tangerina, hortaliças e, até, café (para consumo interno). Em outra área, a “baixada turfosa”, produzia-se banana d’água, laranja, coqueiros, milho, arroz, aipim, batata-doce e hortaliças. Maria do Carmo Galvão, estudando a mesma região, fornece-nos um quadro mais detalhado. Na “Serra”- nome que ela dá às “encostas”- produzia-se também mangueira, jaqueira, jiló, maxixe, abóbora, abacateiro, batata, aipim e chuchu. O “Brejo” - nome dado à “baixada turfosa”- conheceu um incremento na sua produção, segundo a autora, a partir da chegada dos portugueses. Com eles teria se desenvolvido “consideravelmente” ao lado do aipim, do milho e da batata-doce, o cultivo do chuchu, da berinjela, do alface, da couve, do brócolis, da chicória, do jiló e do quiabo. Todos eles, continua Galvão, “produzidos em larga escala para o mercado”. 


Lavrador da Barra da Tijuca, Fundo Última Hora, do Arquivo Público de SP, 09/06/1953.


Quanto à “Vargem” –nome dado à “baixada argilosa”- a descrição é quase totalmente idêntica à de Nogueira.
      

Nas fazendas Guandu do Sapê, Guandu do Sena e Sete Riachos - todas situadas na localidade do Mendanha - havia o predomínio em suas “Várzeas” dos laranjais e da “lavoura mista”, já nas “Serras” encontravam-se bananais e “grandes latadas” de chuchu.  Em Sepetiba, nas terras da antiga fazenda Piaí, havia plantação de aipim, batata-doce, laranja e “todo tipo” de hortigranjeiros. Mas segundo Alcebíades Rosa o “cultivo forte” ainda era o café e a cana-de-açúcar.
      
Lavrador de Guaratiba, Fundo Última Hora, do Arquivo Público de SP, 07/04/1959.



Em Jacarepaguá, seus lavradores, “horteiros em sua maioria trabalhando mais próximo do centro”, produziam quase que exclusivamente repolho, pimentão, abobrinha, agrião, alface, acelga, couve, tomate, berinjela, cenoura, chicória, beterraba, rábano, rabanete, salsa, cebolinha. Fora isso cultivavam alguns poucos tipos de frutas como banana e laranja.
      

Lavradoras de Guaratiba, Fundo Última Hora, do Arquivo Público de SP, 17/03/1953


Mas além das verduras, legumes, cereais, frutas, outro produto muito valorizado era a lenha. Segundo P. Geiger, a grilagem de imensas áreas de terra da Fazenda Nacional de Santa Cruz se destinava, “desde há tempos”, à extração de madeiras das partes cobertas de mata. Mais tarde, P. Geiger e Myriam Mesquita estabeleceriam um paralelo entre o comércio de lenha e a crescente especulação com a terra, sendo os dois resultados diretos da “conjuntura da expansão de loteamentos”. No entanto, ao observarmos as experiências de algumas localidades, podemos ver que o comércio de lenha não era resultado do abandono da produção de gêneros alimentícios, e sim algo que lhe era complementar. Magalhães Correa mencionava desde a década de 30 a importância desse produto na produção agrícola de algumas localidades. Em Cafundá, localizada no “valle do Rio Taquara”, seus lavradores exploravam o “commercio da banana, batata, laranja, carvão e lenha”. Nas lavouras de Cabuçu, no Distrito de Campo Grande, os arrendatários se dedicavam ao cultivo de banana e também fabricavam carvão e trançavam lenha. Segundo José Cezar de Magalhães, a proximidade de padarias e outros estabelecimentos comerciais junto às áreas de plantio também era um fator que impulsionava alguns lavradores a plantar eucaliptos de modo a fornecer lenhas para os seus fornos. Versão que é confirmada por Amélia Nogueira, para o caso de Vargem Grande. Nas suas encostas, os lavradores exploravam lenha e carvão, que eram transportados em “Jacás sobre o dorso de burros e empilhadas onde vão ter os caminhões dos comerciantes”. Depois a lenha era revendida na Taquara e em Cascadura para o abastecimento de fornos de pequenas fábricas e padarias. Porém, fosse qual fosse o motivo, Magalhães assegurava que a fiscalização empreendida pela Secretaria de Agricultura no início da década de 60 era “muito rígida”, fazendo com que a atividade extrativa de lenha não fosse tão abundante quanto o era no período 1930-1938.
       


Idem.


A partir dessas informações podemos saber o que em geral era cultivado, mas cabe ainda perguntar as maneiras pelas quais era realizada a exploração dos “lotes” ou “roças”. Na serra do Mendanha, as duas regiões estudadas por Hilda Silva apresentavam o seguinte perfil: no Guandu Sapê, a produção era tocada por “arrendatários”; no Guandu do Sena, a maior parte das lavouras seria explorada por “sitiantes”. No caso desta fazenda – assim como em outras áreas do Sertão Carioca - a categoria “sitiante” designava não somente pequenos proprietários, que “já são donos das terras”, como também “outros [que] assim se consideram em virtude de estarem aí fixados há muitos anos”. A mão-de-obra desses lavradores provinha da própria família; nos “sítios maiores”, empregava-se o trabalho de dois ou três “assalariados”, que eram também chamados por Hilda Silva por “diaristas”.            
     

Lavradores de Bangu, 13/01/1959. Fundo Última Hora, do Arquivo Público de SP, 17/03/1953



Em Vargem Grande, na área do “Brejo”, os portugueses além de serem maioria ali eram também “arrendatários” do Banco de Crédito Móvel. O interessante é que era comum haver dois ou três sócios em cada arrendamento. Já na “Serra”, a paisagem era dominada pelas propriedades dos “sitiantes” e “pequenos proprietários”. A diferença entre eles era que enquanto os primeiros residiam em seus sítios, os segundos moravam na zona urbana do Distrito Federal. Na “Vargem”, o quadro era bem mais diversificado: havia “grandes” e “pequenos proprietários”, assalariados e arrendatários.
      


No caso do Sertão Carioca é interessante notar que boa parcela desses pequenos lavradores não se dedicava exclusivamente à agricultura. Em Sepetiba por exemplo, a produção agrícola também era realizada por pescadores. Esse também parecia ser o caso dos pequenos lavradores de Pedra de Guaratiba. Em Vargem Grande, os carvoeiros também eram lavradores. Em alguns casos, as ocupações alternativas podiam ser eminentemente urbanas. Lyndolpho Silva, conhecida liderança camponesa do PCB e que começou seu trabalho de militância no Sertão Carioca, mais precisamente em Campo Grande, argumenta que pelo fato da “roça” dessa região ser muito próxima do centro urbano, os pequenos lavradores faziam trabalhos urbanos e temporários. Segundo ele, era comum o arrendatário e o posseiro trabalhar “uma parte de seu tempo vago no posto de gasolina”. Havia um caso no qual nem mesmo a produção era realizada por lavradores. Isso teria se dado em Vargem Grande, onde segundo nos informa Maria Galvão, “muito” dos bananais da “Vargem”, principalmente na parte sul da estrada dos Bandeirantes(mais próxima do Recreio dos Bandeirantes), não era explorados por lavradores e sim por “donos de sítios de veraneios”.         
     
Realengo em seu cotidiano, Fundo Última Hora, do Arquivo Público de SP, 08/05/1953.


Os dados coligidos não nos permitem assegurar a proporção entre o volume da produção que se destinava para a subsistência e aquele que era comercializado. Amélia Alba informa que nas “Encostas”(ou “Serra”) de Vargem Grande, os “sitiantes” que moravam na “cidade” praticavam apenas agricultura comercial, já os “sitiantes” que além de trabalhar moravam no “sítio” também produziam para sua subsistência. Maria Galvão acrescenta que entre estes, somente feijão, milho, café e cana-de-açúcar não eram comercializados, e “muitas vêzes” eram cultivados pelas próprias “crianças da casa”. Porém, com a passar do tempo, essa economia de subsistência ia perdendo espaço para a “economia de exportação”, isto é, destinada aos mercados e feiras-livres.
     

De qualquer modo é possível assegurar que essa produção para o mercado era significativa, já que em todas as localidades havia atividades nesse sentido. Em poucos casos a venda da mercadoria se dava na própria localidade do lavrador que a produzia. Temos um exemplo, ainda da década de 30, em que M. Corrêa nos fala sobre o que acontecia na estrada de Jacarepaguá, que ligava o bairro de mesmo nome à Barra da Tijuca. Ali segundo ele, o contato entre o produtor e o consumidor de gêneros era direto:
“Ao longo da estrada, transformada em feira livre, pelos seus habitantes, encontram-se gurys, à margem de suas choupanas, tendo em permanente exposição gaiolas com passarinhos, meninas vendendo ovos e gallinhas, mulheres e velhos com bananas e laranjas, emfim, tudo que produz essa zona exuberante. Estas mercadorias penduradas em vários giráos e ganchos, esperam a passagem dos turistas.”


Lavradores da Barra da Tijuca, Fundo Última Hora, do Arquivo Público de SP, 10/03/1952.
     
Porém, o autor ressalva que esses compradores eram turistas estrangeiros,
“pois os nossos, quando vão por essas estradas, passam em automóveis voando, já são conhecidos; quando chegam, porém, aos lares ou em roda de amigos, dizem: ‘foi extraordinário, indescriptivel o que vimos!...’ Pobres dos que ficaram no caminho, pois à sua passagem transformam a estrada em verdadeiro vendaval, nuvens de poeira, só poeira!”

      

O mais comum, entretanto, era que esses produtos fossem comercializados em Mercados e feiras-livres. Quanto aos primeiros, os maiores destinatários daquela produção eram o Mercado Municipal, localizado no centro do Distrito Federal, que tinha a preferência das bananas de Vargem Grande e das laranjas do Mendanha, e os Mercados regionais de Madureira e Campinho, para onde ia a maior parte da produção de Sepetiba e da área de Vargem Grande conhecida como “Serra”. Quanto às feiras, as mais freqüentadas por produtos do Sertão Carioca eram as de Campo Grande, Cascadura, Irajá Madureira, Marechal Hermes, Realengo, Penha e Tijuca. Com exceção das duas ultimas, todas ficavam nas zonas rural e suburbana.
           
Lavradores de Jacarepaguá visitando a redação do Última Hora, Fundo Última Hora, do Arquivo Público de SP, 11/10/1954.


A expansão imobiliária somada a outro processo que lhe era correlato, a inflação,  concorreram para modificações nos próprios mecanismos de reprodução desses pequenos lavradores.  Vimos páginas acima que estudos de época de alguns geógrafos entendiam que a simples iminência da constituição de loteamentos influía na escolha do tipo de lavoura(temporária ou permanente) a ser explorada e, de certa forma, na própria forma de moradia (feita com material de muita ou pouca resistência) desses lavradores. Mas não era só a etapa dedicada à produção que parece ter sofrido certas modificações, como também a etapa voltada para a comercialização. Assim como a terra era objeto da “cobiça” crescente do jogo especulativo, o mesmo ocorria com os gêneros alimentícios. E tanto um como outro tinham em termos econômicos um valor bem mais auto do que os custos da produção de gêneros alimentícios. Nesse tipo de conjuntura passava a ser vital que o produtor detivesse um mínimo de controle sobre os mecanismos de circulação de mercadorias. No caso do Sertão Carioca isso significava possuir meios de transporte ou ao menos participar de sistemas de frete que lhe fossem favoráveis. Alguns estudos mostram que no Mendanha, Jacarepaguá e Vargem Grande uma parcela significativa dos pequenos lavradores procurou exercer domínio sobre duas das etapas da “operação agrícola”: a produção e a comercialização.
      

Tomemos o exemplo de Vargem Grande. Ali os portugueses, sejam os “ilhéus” ou os “portugueses”, teriam desenvolvido uma peculiar “divisão” de atividades entre a lavoura e o mercado. 


Virada de ano em Sepetiba com grande participação dos lavradores locais. Fundo Última Hora, do Arquivo Público de SP, 31/12/1954.

Diferentemente dos brasileiros, ressalta Maria Galvão, os portugueses distribuíam entre si, “de acordo com as aptidões e preferências pessoais”, as tarefas “do campo e da cidade”. As “sociedades” exerciam importante papel para que esse sistema funcionasse:
“O que é escalado para a feira não se envolve na roça, os da roça não faz (sic) feira. Uma reunião, realizada geralmente aos domingos, entre feirantes e lavradores de uma mesma sociedade, permite o acêrto de contas semanal e a distribuição eqüitativa de despesas e lucros.”

E os portugueses faziam questão de propalar que esse “acêrto de contas” assim como as “sociedades” se assentavam no “respeito pela palavra”, não tendo nenhum fundamento jurídico.




Leonardo Soares é professor da UFF e pesquisador do IHBAJA




Outros textos do IHBAJA podem ser vistos no Blog e no facebook: https://www.facebook.com/ihbaja/?notif_t=page_fan



Continue lendo →

domingo, 22 de novembro de 2015



Uma excelente notícia para os moradores, estudiosos e professores que vivem, pesquisam ou atuam na região da Baixada de Jacarepaguá. Foi lançado em julho o livro “O asilo e a cidade”, coletânea de textos sobre a antiga Colônia Juliano Moreira, sob a coordenação das pesquisadoras Ana Teresa Venancio e Gisélia Franco Potengy.




São ao todo nove capítulos, que abordam o mesmo tema sob pontos de vista diferentes. No primeiro capítulo, o(a) leitor(a) tem a oportunidade de conhecer a história da ocupação do antigo Sertão Carioca, com todos os conflitos a ela inerentes, de autoria de Renato Dória (professor e pesquisador do IHBAJA). O segundo capítulo nos oferece um rico painel da evolução urbana da Colônia, produzido por Renato Gama-Rosa e Ana Paula Casassola Gonçalves. Em “E eu sei doutor?”, capítulo escrito por Janis Cassília (outra professora e pesquisadora do IHBAJA), temos uma excelente análise sobre a experiência da doença e as falas de internos da Juliano Moreira durante a vigência do Estado Novo de Getúlio Vargas. O quarto capítulo trata das memórias coletivas e identidades sociais na história do Pavilhão Nossa Senhora dos Remédios, trabalho esse coletivo, concebido por Ana Venancio, Laurinda Rosa Maciel, Anna Beatriz de Sá Almeida, Bruno Dellacort Zilli e Silvia Monnerat.

No capítulo cinco, também construído coletivamente, Anna Beatriz, Ana Carolina de Azevedo Guedes e Pedro Henrique Rodrigues Torres tratam da doença mental e da tuberculose nas mulheres internas do mesmo Pavilhão, entre 1940 e 1973. No capítulo seguinte, as práticas católicas na Colônia são estudadas por Sigrid Hoppe, tendo por base a atuação da igreja da instituição e a festa de São Cristóvão.

O capítulo sete, de autoria de Renato Dória e Leonardo Soares (outro professor e pesquisador do IHBAJA) resgata a história de Jacinto Luciano Moreira, cidadão negro, médico da Colônia e militante do Partido Comunista do Brasil. Sua bela trajetória, entre 1945 e 1962, se revela por meio da consulta de importante conjunto de documentação do fundo da polícia política do Rio de Janeiro. O oitavo capítulo também faz um mergulho na história e nos traz a história da assistência psiquiátrica na instituição durante o governo JK, tema da pesquisa de André Luiz de Carvalho Braga. O último texto é de autoria de Sigrid Hoppe e Gisélia Potengy, que aparecem novamente para falar sobre a identidade e apropriação do espaço no bairro Colônia.

As várias pesquisas presentes no livro contaram com o financiamento da FAPERJ, CNPq e Fiocruz. E os principais acervos de documentação usada por aquelas foram encontradas no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) e no Núcleo de Documentação e Pesquisa do Instituto Municipal de Assistência a Saúde Juliano Moreira da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (IMASJM-SMS-RJ).

É um motivo de orgulho para a sociedade civil da região contar com um estudo como esse, de caráter multi-disciplinar, que ilumina tanto o passado como a atualidade do território, expondo suas contradições, lutas, embates e triunfos, de segmentos costumeiramente marginalizados (internos, “loucos”, pobres, mulheres, negros, comunistas etc.). Conforme enfatizam as organizadoras do trabalho, Ana Venancio e Gisélia Potengy, buscou-se “demonstrar várias formas sociais, pelas quais a Colônia se fez presente na história da cidade do Rio de Janeiro: como expressão de políticas públicas de saúde, das transformações urbanas do espaço que ocupa, dos sujeitos que a constituíram e das representações em torno da loucura que ali circularam.”


IHBAJA


Continue lendo →

sexta-feira, 6 de novembro de 2015


DIA 29 DE NOVEMBRO - Feijoada de 10 anos do Jornal Abaixo-Assinado de Jacarepaguá (JAAJ) - A PARTIR DAS 13H. PARTICIPE!!!


RESTAURANTE GAROTA DO PECHINCHA
Rua Geremário Dantas, 522 - Pechincha


Feijoada gostosa, pagode e mpb, karaokê e sorteios de brindes!!!

O vereador Leonel Brizola Neto entregará Moção da Câmara  Municipal ao JAAJ pelos seus 10 anos!!!

Sua contribuição e participação fazem acontecer o jornal das lutas populares da Baixada de Jacarepaguá.

Você escolhe o valor da contribuição ao adquirir o convite da feijoada: R$15 - R$25 -R$50 - R$100.

Bebidas Não Inclusas! Esses valores são para comer a feijoada e ajudar o jornal.

OBS: Cada convidado compra sua bebida diretamente do restaurante.


PARTICIPE!!!

Continue lendo →

domingo, 12 de julho de 2015



Nenhuma informação pudemos obter sobre as origens e o início da trajetória do advogado Heitor Rocha Faria no PCB. O registro mais remoto data de 1947, logo depois da cassação do PCB pelo Supremo Tribunal Eleitoral, quando H. R. Faria impetrou um habeas corpus, posteriormente negado pelo Supremo Tribunal Federal, em favor de Luiz Carlos Prestes e outros dirigentes do PCB.
Sabemos, contudo, que sua trajetória guarda muitas semelhanças com a de seu companheiro de partido e profissão, o também advogado Pedro Coutinho Filho. No que tange a luta pela terra, H. R. Faria atuou como advogado dos “posseiros” e “arrendatários” da Fazenda Coqueiros, em Santíssimo, por meio da Associação de Lavradores da Fazenda Coqueiros(ALFC). Tal organização foi criada em 1952 e tudo indica que ela tenha sido idealizada por ele e Lyndolpho Silva, seu primeiro presidente. Além das “providências jurídicas”, H. R. Faria participava ativamente das discussões dos Encontros e Assembléias organizadas pela ALFC, opinando sobre encaminhamentos e propostas de cunho propriamente político. Também teve presença destacada na I Conferência dos Lavradores do Distrito Federal (1953), chegando a ter sua “Tese” de número nº 13 aprovada para constar do documento final desse encontro. Por meio dela, propugnava os seguintes pontos: que “a lavoura” devesse ser “explorada obrigatoriamente e privativamente pelas Associações de pequenos lavradores”; conjugação das Cooperativas de produção e de consumo na Constituição das Associações; atribuir às Associações o “serviço social a ser prestado ao lavrador”. Ele seria também, na condição de “advogado e consultor jurídico” da ALFC, o secretário-geral da I Conferência dos Lavradores do Distrito Federal em 1958. É muito provável também que o advogado tenha sido um dos principais elaboradores da “Carta do Lavrador”, espécie de documento final do encontro, e que foi oficialmente proposta pela ALFC.






Mas a atuação de H. R. Faria no movimento de luta pela terra não se limitou àquela localidade do Sertão Carioca, pois teve também papel de destaque na luta dos “posseiros” de Jacarepaguá também, atuando como advogado.
Sabe-se que Heitor também teve notável participação em Jacarepaguá como militante pecebista, instruindo e coordenando os pequenos lavradores da região na montagem e organização de entidades associativas. Ele vinha periodicamente a Jacarepaguá participar de reuniões e eventos políticos nas Associações de Lavradores, no Comitê Democrático Progressista e na Liga Camponesa.
Sua filha Rhonneds Aldora nos conta que ele era chamado em Jacarepaguá para participar de casamentos, churrascos e batismos. Era tanta a admiração dos posseiros da região por ele, que Heitor acabou sendo o padrinho de vários de várias crianças. O que mostra o elevado grau de reconhecimento de todo o trabalho que ali desenvolvia. E isso sem cobrar um tostão. Rhonneds diz que ele não tinha coragem de cobrar de pessoas tão humildes. Todo o serviço jurídico era realizado gratuitamente.

Leonardo Soares é pesquisador do IHBAJA e professor da UFF
Continue lendo →

segunda-feira, 20 de abril de 2015

“Pai dos pobres” e dos enfermos também: As visitas de Getúlio Vargas à Colônia Juliano Moreira

*Janis Cassília
Professora e pesquisadora do IHBAJA
Doutoranda em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz - Fiocruz


       É certo e assunto já discutido que o governo getulista do Estado Novo baseou-se na personificação do poder na figura do presidente, tratando-o como figura interessada em salvar a nação. Getúlio Vargas foi considerado o “pai dos pobres”. Por decretar direitos importantes para o trabalhador, como a Consolidação das Leis Trabalhistas. A ele eram endereçados inúmeras cartas pedindo auxílio. Eram solicitações de emprego, viagens, casas, remédios, etc. Uma simples visita do então presidente virava uma manifestação popular e patriótica.
            Assim eram as visitas de Getúlio à Colônia Juliano Moreira. Inaugurada em 1924, durante as décadas de 40 e 50 recebeu incentivo financeiro federal para aumentar suas instalações e transformar-se em centro de excelência no tratamento psiquiátrico. Era o enorme hospital-colônia de Jacarepaguá que abrigava na década de 50 mais de 3 mil pacientes. A cada novo pavilhão, núcleo, hospital, ambulatórios ou outros edifícios e serviços, autoridades vinham para a instituição e realizavam as cerimônias de inauguração. Getúlio era um deles, na verdade, a figura mais importante, a que discursos eram proferidos em homenagem.


“Visitando a Colônia Juliano Moreira, o presidente Getúlio Vargas palestra com um enfermo ali internado” (1941).
Fonte: Anais da Assistência a Psicopatas, 1941, p.21


“O Dr. Adauto Botelho, diretor do serviço de assistência a psicopatas mostrando ao Presidente Getulio Vargas as novas instalações da CJM.” (1941) Fonte: Anais da Assistência à Psicopatas. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1941, p. 31.


            Em 1941, por ocasião de inauguração de obras do futuro núcleo Teixeira Brandão (para pacientes mulheres), uma série de cerimônias foram realizadas. A esses eventos compareceram autoridades e familiares, médicos e residentes das localidades próximas. Era uma verdadeira festa, a que personagens geralmente excluídos da sociedade tomavam parte, os enfermos. Fazia parte da propaganda governamental promover tais eventos e por isso não era incomum Getúlio caminhar por dentro da Colônia solicitando informações sobre as condições de vida dos internados. Até conversas com os mesmos eram registradas, isto é, com os doentes autorizados a caminhar pela instituição.       
            Essa presença do então presidente era tão marcante que os próprios internos da Colônia narravam em suas falas. Escreviam à Getúlio como indivíduos consciente de seus direitos como Amália*, internada com o diagnóstico de Epilepsia, que se dirigiu à Cascadura sem autorização médica, e enviou telegrama ao Gabinete do Presidente pedindo sua liberdade. A carta de Amália teve resposta e foi necessário que os médicos convencessem os representantes do Gabinete de que a mesma não poderia obter alta. Muitos ofícios foram trocados entre as instituições para que Amália tivesse alta. Ao presidente cabia aliviar e ajudar o cidadão que pedia auxílio coisa que no caso de Amália não se cumpriu uma vez que com o diagnóstico confirmado, o poder médico se sobrepôs ao poder do presidente.
            O imaginário popular sobre Getúlio Vargas é riquíssimo. Seja como ditador ou como “pai dos pobres”, este presidente adentrou mentes sãs e ditas doentes em sua época. Amália* entre outros são apenas alguns dos internos da Colônia que falavam sobre o governante. Eles eram amantes, mães, amigos, padrinhos, afilhados, filhos, pessoas bem relacionadas com o presidente, que por sua vez intercedia por eles nas suas mentes, e fora delas também.
           


* Todos os nomes aqui mencionados são fictícios para preservar a identidade dos indivíduos. Os casos clínicos aqui mencionados integram a dissertação de mestrado da autora pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Fiocruz.
Continue lendo →

quarta-feira, 4 de março de 2015

Rio 450 anos

        No início do século XVI, os índios tamoios habitavam todo o atual território fluminense. Eles foram dizimados pelos portugueses, que basearam o seu projeto colonial em dois grandes vieses: usurpação das terras indígenas e exploração da sua força de trabalho. Como eram grandes guerreiros, os indígenas resistiram bravamente através da Confederação dos Tamoios que, aliada aos franceses durante dez anos (1555-1565), desafiou a soberania portuguesa no sul da colônia.

Vista do Pão de Açúcar. Arquivo Pessoal.

 Em 1555, os franceses aportaram na Baía de Guanabara e fundaram o forte de Coligny na Ilha de Serigipe. Comandados pelo almirante Nicolas Durand de Villegagnon pretendiam garantir a exploração do pau-brasil e conseguir um território onde os calvinistas franceses pudessem exercer livremente sua religião. Essa colônia, chamada de França Antártica, existiu de 1555 a 1567.

No dia 1º de março de 1565, o Capitão-mor Estácio de Sá fundou, entre o Morro Cara de Cão e o Pão de Açúcar, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. A cidade recebeu esse nome em homenagem ao Rei de Portugal, D. Sebastião. A localização lhe possibilitava servir de abrigo para os ataques franceses. O ponto de referência para delimitar o território da recém-criada cidade foi uma casa de pedra construída em 1530 por Martim Afonso de Souza. Ela era muito sólida e diferente das habitações dos tamoios, por isso foi chamada pelos índios de karaiwa  oka, que significa "casa do homem branco”. A partir do século XVIII, o termo “Carioca” passou a ser usado como apelido para os moradores da cidade.

A primeira expedição portuguesa para expulsar os franceses foi organizada por Mem de Sá, o terceiro Governador-Geral do Brasil, em 1560. Apesar de ter destruído o forte de Coligny, essa incursão não obteve o sucesso esperado, pois os habitantes do forte fugiram para o continente com a ajuda dos tamoios. A derrota definitiva só ocorreria sete anos depois, quando Estácio de Sá recebeu reforços do seu tio Mem de Sá. Em 20 de janeiro de 1567, no Outeiro da Glória, os franceses finalmente foram expulsos da colônia portuguesa e os tamoios tiveram suas aldeias destruídas e suas terras ocupadas e distribuídas entre os portugueses.



Continue lendo →

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A rede de organizações comunistas de Jacarepaguá


Boa parte da historiografia que tratou de revisar a história das esquerdas no país, com maior ênfase no Partido Comunista do Brasil (PCB), buscou com uma obstinação assustadora provar que se havia algo que essa corrente não gostava, esse algo atendia pelo nome de "povo". Queria-se com isso afirmar que os nossos grupos de esquerda tinham pouco ou pouquíssimo apreço pelo trabalho junto ás bases populares, preferindo ditar regras e normas sobre a verdadeira consciência de classe atrás de suas escrivaninhas e á frente de pilhas de empoeirados tomos de vulgarização do marxismo editados pela escola soviética (e stalinista) de ciências. Mas as pesquisas mais recentes, baseadas maciçamente na apuração de documentos de época, têm revelado uma faceta bem mais interessante – e muito menos caricata – dos militantes e das organizações que pertenciam ao antigo PCB.

E vale lembrar que os comunistas tiveram passagem marcante, embora pequena, na região de Jacarepaguá. Atuação esta que remonta ao período em que o bairro era ainda quase que totalmente agrícola, desde os anos 30. Algumas células da Aliança Nacional Libertadora (ANL) são dessa época. O próprio perfil agrário do bairro, que era caracterizado por um certo isolamento do local, favorecia a realização de atividades de “agitação e conspiração” de maneira mais tranquila e sossegada – ao menos teoricamente.



Casa do Tanque onde eram realizadas reuniões da célula comunista local


A partir dos anos 40, mais precisamente no ano de 1945, com a volta do Partido à legalidade, alguns de seus quadros viam em Jacarepaguá um lugar de grande potencial para a montagem de uma rede sindical vermelha na zona rural da cidade. Além disso, a crescente expansão urbana produzia consequências ambíguas: se de um lado aumentava a demanda por serviços públicos urbanos (estradas, ruas, calçamentos, luz, água, postos de saúde etc.), por outro, tal expansão colocava em risco a agricultura do lugar. Todavia, não restava dúvida que eram situações de grande potencial conflitivo e os comunistas viam nisso uma excelente oportunidade de marcar posição junto aos habitantes do bairro. Na verdade começava ali, com grande participação do PCB, um amplo processo de criação de movimentos locais que demandavam por melhorias nos diferentes bairros.


Outra sede de reuniões


E seria nesse contexto que o Partido criaria os Comitês Populares Democráticos (CPD), que seguiam a chamada política de massas do “partido de Prestes”.  Notem que aqui não passava pela cabeça de ninguém fazer algo sem o prévio processo de politização das classes populares. E, detalhe, não se está falando aqui de algo como uma revolução – mas tão somente uma ação em prol da construção de uma bica d’água ou do conserto de uma calçada -  que era algo geralmente em falta em Jacarepaguá naqueles anos 40, quase 50 (e ainda seguiria faltando por várias décadas afora).


Neste endereço (início da estrada do Gabinal) foram realizados alguns eventos da Liga Camponesa de Jacarepaguá




Com esse propósito, militantes do PCB como o cearense Pedro Coutinho Filho, o médico Jacinto Luciano Moreira e ativistas como Waldyr Moura e Antonio Caseiro montaram algumas organizações que tinham como objetivo específico prover serviço jurídico aos seus associados, lutar pelas melhorias no bairro e organizar eventos como assembleias, palestras, mesas-redondas e até festas e churrascos (quem é de ferro?).

Esses eram os temas tratados nos vários CPD’s criados pelos comunistas, assim como na Liga Camponesa de Jacarepaguá, nas inúmeras células (23 de Outubro, Ajuricaba), nas Uniões Femininas e nas Comissões pela Paz.



Leonardo Soares é historiador do IHBAJA e professor da UFF
Continue lendo →

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015




Não é de hoje que as terras da região de Jacarepaguá (em especial as da Barra da Tijuca) são escandalosamente roubadas, em plena luz do dia, sob as barbas dos poderes públicos. Na verdade, a história dessa área revela um processo incessante de esbulhos, falcatruas cartorárias e atentados contra a vida humana, por conta das inúmeras disputas envolvendo a posse e a proriedade da terra. E isso desde os tempos dos clãs dos Assecas e dos Sás, e com a intermediação nada sagrada de algumas ordens religiosas (estas também grandes senhoras e possuidoras de terras).

E a coisa só piorou no período imperial e – pasmém – republicano. E no século XX a questão ganhou contornos mais dramáticos. Já que se nas épocas anteriores, a violência só atingia apenas as famílias diretamente envolvidas nas disputas, a partir de meados do século XX a sanha das loteadoras passa a visar a expulsão de centenas de famílias de uma mesma área e de forma indiscriminada.

Na antiga zona rural da cidade do Rio a expansão urbana fez inúmeras vítimas. De Santa Cruz a Jacarepaguá, vários casos de dor e sofrimento de famílias de pequenos lavradores dão testemunho do processo criminoso de expoliação que varreu a agricultura carioca. Na área de Vargem Grande e Vargem Pequena os lavradores eram obrigados a aceitar “um contrato com cláusulas medievais” do Banco de Crédito Móvel. O Radical noticiava em agosto de 1950, que as Companhias Tijucamar, Barra da Tijuca AS e Lagoamar AS agiam na Restinga de Jacarepaguá (atual Barra da Tijuca) para “negociar” terras que não lhe pertenciam. Por conta disso, “posseiros trintenários eram desalojados a mosquetão e a sevícias” por “capangas armados até os dentes”.

Sem esquecer da Fazenda Santo Antônio de Curicica (Jacarepaguá). Os primeiros embates entre lavradores e pretensos proprietários a chamar a atenção da imprensa datam do início da década de 50. Em 1952, por exemplo, os senhores Júlio César Fonseca e Gustavo de Carvalho (pretensos proprietários) conseguiram uma ordem de despejo contra cerca de 120 famílias que, assim diziam, trabalhavam ali há mais de 30 anos. Outra exigência foi encaminhada ao prefeito no sentido de que esse designasse uma comissão composta de três engenheiros para proceder ao “levantamento da área”. A luta desses lavradores era bem mais antiga: há 17 anos pelo menos, muitos deles vinham depositando as taxas de arrendamento em juízo. Em 1947, a Cooperativa de Agricultores de Jacarepaguá e a Liga Camponesa de Vargem Grande já mobilizavam esforços para tratar da “ameaça de expulsão” de 46 lavradores na Fazenda Curicica. Mas nesse momento, as salas dos tribunais já não eram suficientes para comportar por inteiro os embates entre os lavradores, que se diziam responsáveis pelo abastecimento de 40 toneladas diárias de legumes, frutas e verduras aos mercados do DF, e os “grileiros” Júlio César Fonseca, Luiz Saddy, o Banco de Crédito Móvel, a Cia. Bandeirantes e o Banco de Crédito Territorial, acusados de se valerem “de documentação falsa e de outros meios escusos” para satisfazerem seus intentos - afirmava o’ Radical em 1954. “A luta pela posse da terra está mais acêsa e mais violenta em Jacarepaguá” – noticiava com certo entusiasmo o jornal comunista Imprensa Popular em julho de 1954. Lendo as declarações de alguns lavradores, é possível perceber que as disputas em torno da posse da terra já não tinham o recato e comedimento exigidos por uma disputa jurídica. Ao contrário, os últimos acontecimentos davam força à idéia da história de Curicica como tendo sido feita “de sangue, violências e desumanidades”. O aumento da violência era atribuído por lavradores e imprensa à aplicação de uma tática agressiva por parte dos pretensos proprietários. Segundo nos conta o Imprensa Popular, em meados dos anos 50 “o grileiro César Augusto da Fonseca conseguiu trampolinescamente(sic) ampliar uma área de 535 mil para quase 5 milhões de m² a poder de tapeações, crimes e tocaias”.


Agora há que se perguntar: vendo o que hoje está sendo feito pelos poderes públicos e as empresas (e empreiteiras) que financiam suas candidaturas, no sentido de despejar e destruir a vida de moradores de “ocupações” que estão no “meio de caminho” dos grandes eventos: alguma coisa mudou? Ou a história que teima se repetir?


Leonardo Soares é pesquisador do IHBAJA e professor da UFF.


Continue lendo →